Tratamento da Cultura e do Pensamento Social

23/11/2011 09:56

Tratamento da Cultura e do Pensamento Social

LUIZ ISMAEL PEREIRA

 

“A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica” (Adorno, 2010: 121).

 

Pensar na sociedade como “indivíduo social” não é absurdo paradoxal. Os freudomarxista, com destaque para Marcuse e Reich, ocuparam-se na análise social a partir dos efeitos da formação individual de seus membros. A relação homem-sociedade sofre dupla mediação entre tais elementos: já dissera Adorno (2008:111) que “o conceito de sociedade é um conceito de relação de abrangência universal, um conceito de relações entre elementos, os homens trabalhadores individuais, e não somente a aglomeração desses homens”.

Por isso, pode-se afirmar que A história cultura é a história do próprio pensamento social no sentido de que a análise da formação e deterioração dessa segunda natureza somente será possível se compreendermos o processo de deterioração dos elementos que compõe a sociedade. Aqui há a clara separação e superação do pensamento de Hegel, o qual não entendia que é a o particular (as relações materiais) que determinam a universal (a idéia de sociedade e Estado). A Aufhebun, para ele, somente se daria com a subsunção do particular ao universal.

Isso não continua em pé quando Marx vem dizer que é a história humana, a dominação, as relações de trabalho, as formas de exploração dos meios de produção etc. que construirão a razão preponderante. Serão as pessoas que vivem as problemáticas da vida-do-dia-a-dia que pensarão o que é a cultura, o que é a própria civilização.

Numa sociedade em que o pobre é maioria mundial, mesmo não notando tal situação de exploração (como é o caso de uma classe média brasileira que não se identifica com a faxineira, pois seu trabalho é intelectual, não braçal), onde a aristocracia mantém a concentração da riqueza, não é exagero pensar que a cultura está viciada. Doente! Sim, necessitando de um tratamento.

Ao Divã – O desejo humano é o de realização de seus prazeres! Isso é totalmente relacionado à nossa natureza mais íntima. Desde pequenos, será o prazer oral que nos guiará: o bebê deseja alimentação. Esse é seu instinto. Logo, não é errado dizer que o conforto é natural ao homem, não um sonho burguês. Quem não desejaria morar perto de seu trabalho? No máximo caminhar por dez minutos em verdejantes avenidas para realizar mais um desejo: o trabalho de seus sonhos? Mas essa não é a realidade. O que encontramos na sociedade, formada majoritariamente de pobres que sofrem com trabalhos não edificantes, alienantes – que os separam da própria cadeia de desenvolvimento dos produtos e, pior do que isso, da própria produção – é a manipulação dos desejos da sociedade (Eros), mas a castração do sistema que não dá condições e meios para sua concretização (Tanatos). Essa é a luta constante entre o princípio do prazer e o da realidade, experimentado, à flor da pele pelo pobre que, na melhor das opções, pode apenas sobreviver. Essa sociedade está drasticamente afetada pela dominação de um senhor incorpóreo, que não existe, que sobrevoa as relações materiais e as domina: o capital. Não sem motivos buscam-se formas de alienação para esquecer o sofrimento causado pelo sentimento de culpa da tensão existente entre ID e Supereu: como as drogas, a televisão, o cinema, a religião, a morte.

Diagnóstico: Barbárie – “A barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório” (Adorno). A cultura produzida numa sociedade doente produz somente deturpações bárbaras. Relações de dominação e castração do desejo – e aqui o argumento de Marx mostra-se claramente verdadeiro – produzirão uma cultura de violência, da cada-vez-maior-necessidade-de-liderança, e, consequentemente, da suscetibilidade social ao fascismo. A razão que planeja a morte, a tortura, a maneira como pensa o indivíduo, é a a razão instrumental. A sociedade está sob a sombra da razão que deveria ser luz. Após os eventos ocorridos nos campos de concentração alemães, dos progrons soviéticos, das mortes na Sibéria, da abertura dos porões do DOPS, do ocorrido em Abu Ghraib, da prisão em Guantánamo… A história sucede-se, a barbárie também. Cada evento histórico – e o são pela grandeza de suas repercussões – demonstra que o homem é capaz de algo pior. Toda violência é direcionada contra as consideradas minorias fracas: judeus, mendigos, homossexuais, indígenas. E pior, muitas vezes isso é levado à razão de Estado, ainda que pretensamente democrático. Pensar nessa barbárie produzida ombro a ombro com o princípio civilizatório é pensar, também numa saída, na não institucionalização, na emancipação, na auto-reflexão crítica (Adorno, 2010: 121 e 125), no ser-ainda-não (Bloch). “Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 2010: 224-225).

Complicações Paranóicas – A paranóia está muito mais relacionada à própria constituição da sociedade do que poderíamos imaginar. A personalidade autoritária é o maior exemplo disso. Ligado à sua idiossincrasia, essa que “apega-se ao particular” (Adorno; Horkheimer, 2006: 148), o paranóico não admite que as relações se desenvolvam de modo diferente do que ele está acostumado. Sempre determina o modo e o conteúdo das relações sociais, das mais particulares às mais públicas. Quando essa idiossincrasia chega á razão de Estado, instala-se um governo paranóico. E isso que vivemos, em regra, no mundo. “A racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do sofrimento” (Adorno; Horkheimer, 2006: 141). Esse sofrimento é a demonstração da impossibilidade de vivência dos próprios desejos separados da vontade de Estado. O que Foucault chamaria de biopoder, em Adorno aparecera como essa razão de Estado que adota a idiossincrasia e a dominação. Os mandantes não se realizam, nem econômica nem sexualmente. Castram-se e, por isso, não permitem a realização do outro. Essa projeção da infelicidade é observada nas relações particulares (os pais que não permitem a escolha livre de uma carreira pelo filho, a não ser aquela que, ao julgamento daqueles, será mais rentável), nas relações sociais (o homossexual que apanha e/ou é morto nas ruas é a forma de apagar a realização de um desejo recalcado por parte do agressor. Ele pensa, muitas vezes inconscientemente: não posso realizar meu desejo, logo, não permito que o outro o faça. O homofóbico é homossexual) e até mesmo nas relações políticas (leis “democráticas” que instituem o dia da consciência branca, do heterossexual etc). A base de toda exploração, será, sem embargos, a econômica. Por isso é inútil a tentativa de promoção de direitos humanos legais para a proteção, pois, ao aceitá-los, a minoria aceitará a impossibilidade de revolução e mudança da estrutura econômica que não permite a realização dos desejos. O Revisionismo é a propagação da própria dominação. Não há autoritarismo que se sustente sem a hegemonia do dominado.

“Quem sou eu? O que esperar” – A cultura, como vimos, está ligada ao pensamento social dominante em determinado momento histórico. Decorrerá deste e projetará sua ideologia dominante. Ocorre que o quadro cultural, hoje, dominante é está viciada e é viciadora. A ideologia burguesa não permite que a educação crie indivíduos emancipados, senão que acreditem que a sua própria cultura seja a válvula de escape para um encontro com suas características de pensamento em bloco. “A semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual” (Adorno,1996: 389). essa semiformação, promotora da semicultura, é moldada pela Indústria Cultural que está em todos os lares, salas de cinema, músicas amplamente difundidas. Há uma clara necessidade de uma “política cultural socialmente reflexiva” (Adorno, 1996: 393). Isso não quer dizer que somente a Escola dará a possível educação emancipatória, pois esse aparelho ideológico do Estado é dominado por quem está acima da lei no Estado Democrático de Direito: o poder do mercado. A Escola, como está configurada, não permite a formação que deveria, inevitavelmente, à autonomia e a liberdade (Adorno, 1996). Essa é a “irrevogável queda da metafísica” que esmagou a formação. Pensar uma saída é pensar a própria estrutura da formação cultural que ultrapassa, mas sem excluir, a educação de sala de aula. Essa educação que leva à auto-reflexão crítica do indivíduo em formação. Fora isso, estará preso nos mandos e desmandos da Indústria Cultural que tudo repete, torna equivalente e reifica.

Solução falsa: Remédios! – A produção cultural em massa mata qualquer possibilidade de ideal emancipatório da sociedade. Ditam-se, com todas as exclamações possíveis, os modos de agir dos indivíduos. “A cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança” (Adorno; Horkheimer, 2006: 99). Essa industrialização que produz em massa a nada polpa: tudo vive a sua função com a criação mesmo de uma verdade total, recalcando-se a imaginação. A televisão está em todos os lares e dita o que o trabalhador deseja. O cinema nos joga na fantasia, ou mesmo põe na tela a continuação da vida. O ser humano, naturalmente, é um ser carente. Desejamos algo, mas sem saber o quê. A Indústria da Publicidade se aproveita disso e cria nosso desejo. O trabalhador que passa o dia todo em atividades alienantes, que o separa da idéia de política-vida, que não o permite pensar para além da lógica do capital, ao chegar em casa à noite não quer outra coisa que assistir televisão. Nesse momento, já vulnerável pelo cansaço, estará pronto para receber tudo o que a Industrial Cultural quiser que ele deseje. Escapar desse tipo de indústria é muito difícil e não será possível sem apoio dos que tem maior responsabilidade: os educadores.

Para a cura real: transformação – Quando dizemos que o papel do educador é de grande responsabilidade, não incorremos em exageros. O Estado tem como objetivo a utilização da educação como aparelho ideológico para a introjeção da lógica do capital. Para vencê-la, devemos pensar para além dela. A única forma de vivenciar e experimentar uma possível sociedade emancipada, que se permite a auto-reflexão crítica, será com o dizer “não” ao verdadeiro Soberano: o capital. Toda a tristeza na constatação nos permite, não apenas dizer o que é, mas lutar – e o termo é o mais correto, trata-se de uma batalha – contra o que está posto, tendo em vista o que ainda-não-é. Será “despertar no passado as centelhas da esperança” (Benjamin, 2010: 224). A sociedade ainda não é justa, ainda não é livre, ainda não é feliz. Mas somente será se, ao reconhecer o papel importante da cultura, bem como de sua ligação com o pensamento social, promovermos em ações a cultura revolucionária contra-institucional.


Referências:

 Adorno; Horheimer, 2006. Dialética do Esclarecimento.

Adorno. 2010. Educação Após Auschwitz. In: ______. Educação e Emancipação.

Adorno. 2008. Introdução à Sociologia.

Adorno. 2006. Teoria da Semicultura. Revista Educação & Sociedade.

Benjamin. 2010. Sobre o conceito da História. In: ______. Magia e técnica. Arte e Política. Obras Escolhidas.

Freud. 2010. O mal-estar na civilização.

Meszaros. 2008. Educação para além do capital.

 

 

RCD - Revista Crítica do Direito - ISSN 2236-5141

 

Disponível no site https://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-1-volume-24/tratamento-da-cultura-e-do-pensamento-social (acessado no dia 23/11/2011 às 09h50).